O ELO PERDIDO DO PUNK: A HISTÓRIA DA PRIMEIRA BANDA DE PUNK DOS ESTADOS UNIDOS
- Vittorio Massino
- 7 de dez.
- 8 min de leitura
Atualizado: 8 de dez.
Eles viveram a história de perto, morando com os New York Dolls e tocando com Sid Vicious; contudo, o tempo apagou quase completamente o rastro deixado pelo quarteto na cultura

O estudo da história exige um olhar crítico sobre quem é lembrado e quem é deixado à margem. No contexto da música punk, a banda Pure Hell representa um dos casos mais significativos de negligência histórica.
A trajetória do grupo começou em 1974, na Filadélfia Oeste. Quatro adolescentes — Kenny ‘Stinker’ Gordon (vocal), Lenny ‘Steel’ Boles (baixo), Preston ‘Chip Wreck’ Morris (guitarra) e Michael ‘Spider’ Sanders (bateria) — decidiram radicalizar o som de ídolos como Iggy Pop, Bowie e Hendrix. Buscando algo mais alto e provocativo, eles criaram um som único que os levou a Nova York, onde se tornaram peças-chave de uma subcultura nascente. Sendo músicos negros em uma cena underground majoritariamente branca, a presença deles foi revolucionária. “Fomos a primeira banda punk negra do mundo”, afirma Boles.
“Nós pagamos o preço, arrombamos as portas... e ainda não recebemos o devido reconhecimento.”
Embora o título de "primeira banda punk negra" tenha sido frequentemente associado ao grupo Death, de Detroit, há uma distinção crucial. Enquanto o Death criava seu proto-punk isoladamente, o Pure Hell vivia o epicentro da cena de Nova York, dividindo o palco com lendas do gênero. A estadia da banda na cidade coincidiu exatamente com a era de ouro do movimento: chegaram durante as residências de Patti Smith e Television no CBGB e partiram logo após a morte de Nancy Spungen. Apesar do pioneirismo racial, Kenny Gordon busca um legado maior: “Não quero ser lembrado apenas porque éramos negros. Quero ser lembrado por fazer parte da primeira geração do punk nos anos 70.”
Separada de Greenwich Village por apenas 155 km, a Filadélfia serviu como porta de entrada para a subcultura nova-iorquina. Gordon recorda sua adolescência assistindo a filmes de John Waters, como Polyester e Pink Flamingos, e frequentando o Artemis, ponto de encontro de figuras da cena punk local, como Nancy Spungen e Neon Leon. “Quando ouvi ‘Satisfaction’, soube que era aquele tipo de música que eu queria tocar”, relembra o baixista Lenny Boles. “Eu era pobre demais para comprar instrumentos, então, se alguém tivesse um, eu logo fazia amizade.”
O quarteto rapidamente ganhou notoriedade em sua cidade natal. “Crescendo no oeste da Filadélfia, uma região predominantemente negra, éramos uns dos caras mais loucos que se via nas ruas”, conta Gordon. “Nos vestíamos de drag queens e usávamos perucas, desafiando as pessoas a nos incomodarem. Os vizinhos alertavam: ‘Não entrem na casa desses caras, vocês podem não sair!’
Em 1975, o Pure Hell mergulhou na cena underground de Nova York, buscando as pessoas e lugares que conheciam apenas pelas revistas Rock Scene e Creem. A banda instalou-se no Chelsea Hotel, lar de ícones como Bob Dylan, Patti Smith e Janis Joplin. O primeiro show na cidade ocorreu no brechó Frenzy’s, na St. Marks Place, onde o guitarrista Preston Morris incendiou o amplificador — resultado de volume máximo e fiação defeituosa. A amizade do baterista Michael Sanders com Neon Leon conectou a banda aos New York Dolls, que atuavam como mentores para artistas emergentes. Logo, o Pure Hell foi convidado para uma audição no loft dos Dolls.
“Honestamente, estávamos morrendo de medo”, admite Boles. “Quando entramos, eles estavam bem vestidos, fumando e assistindo a Os Intocáveis. Felizmente, tocamos e os impressionamos.” Gordon completa: “Por trás daquela aparência, eram apenas garotos do Queens. Falávamos a mesma gíria. Eram brancos que agiam como negros, e nós éramos o oposto exato. Éramos inovadores e eles nos valorizaram por isso.”
Após serem despejados do Chelsea, o Pure Hell mudou-se para o loft dos Dolls. “No começo, todos nos odiavam. Tínhamos má reputação pela associação com os Dolls e suas drogas”, diz Boles. “Pelo visual, achavam que éramos de uma gangue — e de fato morávamos em território de gangues na Filadélfia, mas nunca aceitamos o recrutamento. Além disso, com o nome ‘Pure Hell’, pensavam que éramos satanistas.”
Gordon conclui: “Isso era Nova York, isso era o punk. As pessoas não percebem o quão implacavelmente competitivo era. Era uma selva.”
Embora sentissem que poucas pessoas estavam do seu lado, a afinidade com Johnny Thunders levou a inúmeros shows no Max's Kansas City, reduto de Andy Warhol, e no Mother's, um bar gay em Chelsea que se transformou em clube punk, onde o Blondie se apresentou pela primeira vez. A banda foi destaque em diversas publicações, principalmente na revista Interview do próprio Warhol, consolidando seu lugar entre os influenciadores culturais da cena.

Apesar da crescente presença na cena underground, o Pure Hell carecia de um empresário. O baixista Lenny Boles resolveu a questão com audácia: após ler uma biografia de Jimi Hendrix escrita por Curtis Knight — líder da primeira banda de Hendrix, The Squires —, Boles rastreou o endereço do autor e foi diretamente à sua porta. Essa iniciativa ousada garantiu à banda um contrato de gerenciamento com o homem creditado pela descoberta de Hendrix. Kathy Knight, então parceira de Curtis, relembrou a primeira impressão do ex-marido sobre o Pure Hell: “Ele os adorou imediatamente”, disse ela. O casal foi a um clube na Bleecker Street para vê-los tocar, e o vocalista Stinker (Kenny Gordon) chocou a todos ao executar um salto mortal para trás, quase caindo no colo de Kathy. A reação do casal foi total: “Ficamos tão impressionados que investimos tudo o que tínhamos neles na época”, concluiu.
Quem assistiu ao Pure Hell em ação costuma descrever a experiência de forma semelhante. A experiência de Kenny Gordon com a ginástica traduzia-se em uma presença de palco incomparável, com coreografias que ele descrevia como "executadas como um boneco de treino". Musicalmente, o som da banda era mais pesado que o de seus contemporâneos, sendo retrospectivamente classificado como proto-hardcore. “Éramos como quatro Jimi Hendrix, e Curtis sabia disso”, afirma Gordon. Ele ressalta que o objetivo era causar impacto, e que a habilidade do guitarrista Chip (Preston Morris), com seus solos característicos, era inimitável na cena da época.
O entusiasmo dos empresários Curtis e Kathy Knight pela banda era tal que eles sacrificaram três meses de aluguel para financiar sessões de estúdio. Em 1978, Knight organizou a primeira turnê europeia do Pure Hell, durante a qual o single "These Boots are Made for Walking" alcançou o quarto lugar nas paradas alternativas do Reino Unido. Mais tarde, a banda fez sua última aparição pública abrindo o show de Sid Vicious no Max's, em Nova York. O Pure Hell acabou se envolvendo no circo midiático que cercou a morte de Nancy Spungen, ganhando espaço nas “segundas páginas da maioria dos tabloides, como New Musical Express, Sounds e Melody Maker”, conforme Gordon.
Apesar dos contratempos, a turnê europeia foi um sucesso, impulsionado em parte pela campanha de marketing de Curtis Knight, que explorou a questão racial. Knight criou um pôster com uma foto da banda, tirada por Bob Gruen em frente ao Palácio de Buckingham, com o slogan: "Dos Estados Unidos da América, a única banda punk negra do mundo". Na época, Lenny Boles não gostou da abordagem: "Eu disse para o Curtis: 'Por que você precisa nos chamar de banda negra?' Claro, era o que éramos, mas realmente não pensávamos nesses termos. As pessoas na Europa estavam curiosas sobre a banda antes mesmo de chegarmos. Elas nos viam como uma novidade. Não acreditavam que realmente existíssemos."

“Não quero ser lembrado apenas por sermos negros. Quero ser lembrado por fazer parte da primeira geração do punk nos anos 70”
– Kenny Gordon, vocalista do Pure Hell
Apesar de a banda ter sido "impactada" pela campanha de marketing que explorava a questão racial, ela prosperou nas turnês europeias. No Reino Unido, o Pure Hell foi bem recebido pela cena punk londrina, que Boles descreve como multicultural e politicamente engajada. "Todos os punks ouviam reggae. Era tudo música rebelde." Kenny Gordon critica a visão estreita do gênero, afirmando que a “cultura negra é a verdadeira fonte do punk” e que a recusa em reconhecer isso é um erro persistente.
No entanto, a aceitação europeia contrastava com a realidade da indústria musical americana, onde a segregação de gêneros ainda era forte. Lenny Boles reflete que o racismo se manifestava de forma sutil: ao verem bandas brancas menos talentosas assinando grandes contratos, eles começaram a duvidar de si mesmos, sentindo-se "esnobados" e insuficientes. O auge da frustração veio com as gravadoras. Embora quisessem contratar o Pure Hell, todas insistiam em um requisito prejudicial: que a banda se adaptasse a estereótipos raciais, tocando "algo dançante" ou "mais ‘funky’" no estilo Motown. Fiel à sua visão, o Pure Hell se recusou a comprometer sua arte e, como resultado, não assinou nenhum dos contratos oferecidos.
O preço da integridade nem sempre caminha com a lucratividade, e a recusa do Pure Hell em se submeter às limitações da indústria custou-lhes oportunidades de carreira. Após uma segunda turnê europeia em 1979, a banda rompeu com Knight. Um conflito legal complexo fez com que o empresário voltasse aos EUA, levando consigo as fitas master das gravações. O Pure Hell permaneceu na Europa sem acesso ou direitos ao seu próprio material, fitas que Kathy Knight conseguiu salvar após seu ex-marido tentar destruí-las.
O DESAPARECIMENTO DA CENA
O Pure Hell conseguiu voltar aos EUA, estabelecendo-se em Los Angeles. Embora tenham realizado shows memoráveis no Masque — o equivalente ao CBGB de LA — ao lado de The Germs, The Cramps e The Dead Boys, a banda perdeu o ímpeto. Sem empresário, sem contrato com gravadora e sem acesso às suas gravações, a chama se extinguiu. "Tudo acabou completamente em 1980", diz Kenny Gordon, que acredita que "o punk morreu com o assassinato de Nancy [Spungen]. Todo mundo estava se desgastando ao máximo."

A frustração da banda foi agravada pela ascensão do Bad Brains no início dos anos 80, o que fez o Pure Hell se sentir roubado do título de "primeira banda punk negra". Boles questiona: “Sabe, nós levamos a culpa por sermos negros, então por que não nos deram o título no final?” Com o passar das décadas, a memória do Pure Hell desvaneceu-se na história da música, tornando-se uma lenda urbana.
O RESGATE DO LEGADO
No entanto, no início dos anos 2000, o destino interveio. Kathy Knight decidiu leiloar as fitas master do Pure Hell no eBay. O álbum inédito, Noise Addiction, foi arrematado por Mike Schneider, da Welfare Records, que viajou pessoalmente para buscar as gravações.
O legado da banda também foi fervorosamente defendido por Henry Rollins, do Black Flag. Rollins, que conheceu o single da banda em 1979, passou mais de 30 anos procurando por vestígios de sua existência. Ele conseguiu o acetato original do primeiro single e o relançou em sua gravadora, 2.13.61, em colaboração com a In the Red Records. Impressionado com a qualidade do som, Rollins confirmou a raridade do material com Gordon, concluindo que Noise Addiction, lançado em 2006, é uma daquelas grandes histórias de "oportunidade perdida".
A agente de talentos independente Gina Parker-Lawton tornou-se uma das maiores defensoras do Pure Hell. Amiga do baterista Michael Sanders (falecido em 2003), Parker-Lawton entrou em contato com os membros restantes para se tornar sua assessora de imprensa. “Eles foram meio que esquecidos em todos os livros de história do punk”, lamenta ela. Determinada a garantir que a "primeira banda punk totalmente negra" fosse lembrada, ela tem lutado por seu lugar na história da música.
Graças aos esforços de Parker-Lawton, a banda recentemente garantiu sua inclusão no Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Smithsonian, com a doação da icônica jaqueta de couro que Sanders usou em turnê. A história do Pure Hell, portanto, levanta questões cruciais sobre a integridade da nossa memória cultural. “Para mim, é muito importante que a história seja contada corretamente”, diz Parker-Lawton. “Ao correrem os riscos que correram, eles eram foras da lei e verdadeiros pioneiros. Quando as pessoas são tão fiéis à sua arte, isso precisa ser reconhecido.”
Embora suas carreiras musicais não tenham trazido riqueza ou fama, Boles e Gordon encaram seus anos no Pure Hell como fundamentais. "Me diverti tanto que não importa que eu não tenha visto um centavo por isso", diz Boles. "Para nós, não se tratava de ganhar dinheiro. Tratava-se de seguir nossos corações e fazer exatamente o que queríamos fazer.”










